Aos prantos minha
mãe conta pelo telefone que o vizinho a chamou no portão e fez acusações em
frente a outros vizinhos de que ela e/ou os pedreiros, que trabalharam no
começo do ano numa reforma na casa dela, haviam quebrado várias telhas em um
beiral do telhado dele (figura 1). Os dois imóveis são sobrados geminados
extremamente altos.
Parece loucura, sim
eu sei, que uma senhora de 73 anos iria arriscar sua vida ou a quebrar um ou
vários de seus ossos, já bastante frágeis devido à idade, escalando 7 metros ou
mais e ainda pular uma cerca elétrica somente para destruir telhas sem motivo
nenhum. De forma direta ou indireta, ela foi acusada de ser a responsável ou
condescendente com o dano no telhado do vizinho. Ela continua dizendo que
tentava, repito, tentava argumentar de que houve um forte vendaval (fato
amplamente divulgado na imprensa e em redes sociais, lembro de imagens que
mostravam muitos imóveis destelhados e alguns com danos mais sérios no sul e
sudeste do país) e que esse era o responsável pelo ocorrido. Não era ouvida.
O vizinho, que não
mora na casa e estava sem residentes há pelo menos dois anos, proferia que ela
ou os pedreiros - que trabalharam na parte da frente do telhado - eram os
responsáveis pelo o que aconteceu - no telhado dele na parte de trás. Minha mãe
diz ainda que ele constantemente falava de que o ato era “coisa de bandido”,
“bandidagem”, enquanto a esposa inflava o marido e suas acusações perante a
outros vizinhos, dizendo que o que minha mãe contava “isso nunca havia
acontecido” porque durante todo o tempo que tiveram a casa isso nunca ocorreu
e, se aconteceu agora, era porque ela era a responsável.
O homem também
reclamava de um pouco de reboco que havia caído do lado da garagem dele e que
poderia ter “amassado” seu carro durante a tal reforma que minha mãe precisou
fazer. Apesar de morar em outro lugar, o vizinho usa a casa para guardar um
carro antigo (para não falar velho). Nesse caso deixou a entender que minha mãe
teria que arcar com uma reforma em toda a garagem dele por causa do reboco
caído. De fato, isso realmente aconteceu, mas nem minha mãe e nem os pedreiros
viram na época, senão com certeza teriam tomado providência, bom, nesse caso
posso ao menos falar pela minha mãe, mulher que sempre um foi um grande exemplo
de dignidade e de responsabilidade com o próximo. Falando de forma realista,
depois que eu vi o tamanho do tal reboco que caiu, o máximo de dano que teria feito
no carro seria um pouco de sujeira. Sendo muito pessimista agora, o maior
estrago seria um leve arranhado na lateral traseira, coisa que com um polimento
de R$ 50,00 resolveria. Minha mãe, idosa, assustada e muito nervosa com todas
as outras acusações, acabou falando que arcaria com o que fosse necessário,
inclusive com possível uma reforma em toda a garagem do vizinho.
Durante toda a
ligação, tento acalmá-la e digo que se caso ele ligasse ou aparecesse que era
para passar meu número e falar diretamente comigo. Me programo para ir no final
de semana e, se caso necessário, resolver a situação. Durante a semana toda não
recebo nenhuma ligação, e como costumo torcer pelo melhor do ser humano, apesar
de tudo que vem acontecendo, imagino que um lapso de consciência e
razoabilidade pôde enfim ter ocorrido nas mentes do casal vizinho e eles
finalmente puderam ver o quão delirantes estavam sendo e não importunariam mais
minha mãe. Vou de qualquer forma para cuidar dela, que estava ainda abalada com
o acontecido, sim, tenho que infelizmente furar o isolamento. A primeira coisa
que ela me mostra são as tais telhas quebradas, e é bem evidente o que
aconteceu (figura 2). Minha mãe diz que tinha ido a um médico que lhe receitou
um ansiolítico e um outro remédio para dormir, tamanho foi o mal-estar gerado
pela situação. Ela tem um problema cardíaco também. Tento distraí-la com
refeições “diferentes” e passeios de carro pela cidade.
No sábado à tarde o
tal vizinho liga. Eu atendo. Quer falar com minha mãe. Digo que eu estou lá
para resolver a situação. Tento explicar o que aconteceu. Mal consigo falar.
Ele está alterado “Então vocês não vão pagar, é isso? É isso? Não vão pagar?”,
repete. Tenta desligar o telefone sem nem ouvir o que eu tenho para dizer. Eu
quero resolver a situação, ele quer gritar. Há muita raiva nas suas palavras.
As frases são curtas, repetidas várias e várias vezes. Busco trazer a
racionalidade para a conversa. Por um breve momento consigo dizer que não havia
lógica que minha mãe uma idosa subisse àquela altura só para destruir telhas,
ou até mesmo que os pedreiros, que fizeram um serviço na frente de casa, iriam
quebrar as telhas dele na parte de trás, por nada, sem motivo algum. Ouço
insistentemente a esposa dele repetindo ao fundo “isso nunca havia acontecido”,
“isso nunca havia acontecido”, e de novo e de novo...
Perco um pouco da
paciência porque não sou ouvido, altero o tom de voz. Consigo, finalmente,
propor que ele vá para a casa que eu chamaria um pedreiro para explicar o que
aconteceu, o óbvio, e que se caso, por algum motivo insano, fossemos os
responsáveis, eu me comprometia a arcar com todos custos (cada telha deve
custar uns cinco reais, quebrou umas três, então tive uma mãe que quase
infartou e que teve que tomar remédios controlados por causa de R$ 15,00...).
Ele e a esposa
chegam. Lembro deles da época em que eu morava lá. Se minha memória não falha,
eram religiosos, inclusive ele era ou é pastor de uma igreja tradicional
protestante. Também trazem um pedreiro da confiança deles. Acho isso bom e
engraçado. Muito provavelmente desconfiam que eu, minha mãe “alpinista” e o
nosso pedreiro, um senhor experiente e muito paciente, estaríamos mancomunados
em contar uma louca história que envolve eventos da natureza como vendavais que
têm força suficiente para levantar algumas telhas velhas e que existe a
gravidade que faz com que elas caiam. Desconfio que eles sejam do tipo que
acreditam em Terra plana e vírus criado em laboratório para dominação global
chinesa (desculpa, não resisti, mas realmente acredito). Nós cinco entramos na
casa enquanto a esposa repete “isso nunca havia acontecido”, “isso nunca havia
acontecido”. Na escada ao fundo do imóvel, todos conseguem ver o telhado, o meu
pedreiro explica de forma bem didática, quase que para crianças:
“O vento forte fez
a tampa da calha de alumínio voar, um material leve e que não estava pregado, o
que acabou levantando algumas telhas. Uma delas caí na parte de baixo do
telhado, quebrando uma outra telha. Se você contar as telhas que estão
espalhadas, vai dar exatamente a quantidade que falta ali no beiral.” (figura 1 e 2)
O casal, evidentemente, não acredita no que o pedreiro explica, algo que qualquer pessoa que raciocinasse por dois segundos ou menos e que conhecesse minimamente as leis da física não fosse capaz explicar, e então, enquanto a vizinha ainda repete “isso nunca havia acontecido”, “isso nunca havia acontecido”, o marido pergunta para pedreiro deles se aquilo poderia realmente ter ocorrido. O rapaz, que tem massa cefálica e bom-senso, confirma a história.
Eu, disposto a resolver o problema ao invés de elaborar teorias sobre uma idosa de mais de 70 anos que pratica parkour em lugares altos e íngremes sendo uma vilã de telhados alheios, me disponho a conseguir as telhas para substituir as deles que estão quebradas. Na casa da minha mãe tem algumas extras por que sempre acabam quebrando (seja por causa de vento, chuva, sol e granizo, casa nova normalmente já precisa de uma manutenção constante, imagina casas que são mais velhas). Empresto também o martelo e pregos para o pedreiro deles (que mesmo jovem e atlético tem dificuldade para se locomover sobre e telhado e até para descer dele onde usa uma escada sobre outra escada para dar a altura) recolocar a tampa da calha. Penso que são só isso: pregos, telhas, martelo... coisas materiais, são coisas que a gente pode consertar, comprar, reparar, perder, trocar. Uma vida não tem como substituir. Não tem como trocar por outra. Não tem reparo. Assim como pode ser que as mágoas e humilhação de ser acusado ou acusada injustamente, por mais absurda que seja a acusação, e o impacto disso também pode ser que não tenha como consertar.
Após o rápido reparo que não demora nem 10 minutos, todos estamos do lado de fora da casa, o vizinho quer falar com minha mãe e diz que ela, apesar de todas as acusações que eu mesmo ouvi da boca dele, havia entendido errado. Isso é, a culpa ainda é do outro, no caso minha mãe. Pela forma como foi comigo na conversa ao telefone e como esposa continuava a insistir na insanidade da situação, um alimentando a loucura do outro, fica bem evidente que minha mãe entendeu tudo muito bem. Nenhum dos dois deu benefício da dúvida a minha mãe, ou a mim, ou até mesmo a um pedreiro experiente. Minha mãe, acertadamente e depois que tudo que passou, claro que não quer falar com eles. Falo que repararia o reboco da parede que caiu, que aquilo é realmente culpa nossa, mas eles dizem que já vão reformar a casa toda para a vender e que eu e nem minha mãe precisaríamos nos preocupar. Digo que se tiverem mais algum problema que era para falarem somente comigo.
Se ainda o casal pertence a alguma religião cristã não posso afirmar, mas se tem algo que não é tirado da gente é conhecimento, pelo menos das pessoas com cérebro, e independente se são ou não pessoas tementes a Deus, espero que seja de conhecimento deles, ainda mais de um pastor, a história de uma pessoa que foi acusada injustamente, sem direito a qualquer tipo de defesa, sendo punida com crucificação perante a muitas pessoas, outros aplaudiam e apoiavam a situação, inclusive colaborando com as humilhações que ocorriam. Não comparo minha mãe a essa pessoa, claro que não, ela inclusive ficaria bem brava comigo, só estou mostrando que acusações sem provas e irrazoáveis continuam a acontecer desde então, e nos últimos tempos tem sido inclusive estimuladas (um termo que também pode ser usado hoje em dia é “impulsionadas”), muitas vezes por aqueles que deveriam justamente se posicionar contra isso e, especialmente, combater tais coisas. Não aprenderam nada, mesmo se passando dois mil anos. Injustiças vêm se repetindo dia após dia, principalmente com pretos, pobres e mulheres de periferias em bairros e cidades distantes, que são, dentro do possível, noticiadas pela imprensa, mas também podem vir a acontecer com amigos, parentes, mães. Fiquemos atentos, indignados e combatentes em ambas as situações.
A irracionalidade pode uma hora bater no portão da sua casa.